“Você sabe que esses comunistas têm que morrer, e sei que você é um patriota. Precisamos de você.” É assim que, em 1973, Cláudio Guerra, ex-delegado do Dops-ES, com raízes em Mantena (MG), conta os crimes que cometeu, inclusive sobre a morte de Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira, que, segundo Guerra, teve o corpo incinerado na Usina Cambahyba, em Campos dos Goytacazes (RJ).
Familiares de Guerra, inclusive um filho, ainda vivem em Mantena, mas não têm relação com o passado de violências do pai. Ex-delegado e hoje pastor da Assembleia de Deus, ele confessa os crimes cometidos durante a ditadura civil militar no Brasil em uma entrevista de 70 minutos documentada pela diretora Beth Formaggini, que estreou em março deste ano em São Paulo.
No filme-documentário ele relata como eram feitas as execuções de militantes do PCB, e como os corpos torturados pelo Estado eram incinerados. Um desses corpos seria o de Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira, pai do presidente da OAB, Felipe Santa Cruz.
Eles são alvo de uma polêmica que envolve o atual presidente da República, Jair Bolsonaro, que disse que contaria ao presidente da OAB como o pai dele foi morto.
O pastor – como prefere ser chamado Claudio Guerra atualmente – inicia a entrevista portando uma Bíblia em mãos. Agora um senhor de cabelos brancos, ele tinha cerca de 30 anos quando começou a cometer as atrocidades junto ao regime ditatorial. A entrevista é conduzida pelo psicólogo e militante dos direitos humanos, Eduardo Passos, que se esforça de entender como funciona a mente de Guerra. O ex-delegado chega a afirmar que seu trabalho proporcionava sensação de poder e superioridade.
Guerra foi um dos responsáveis pelo desaparecimento político de diversos presos pelo Estado durante os anos de chumbo, deixando muitas famílias sem respostas até o lançamento de seu livro “Memórias de uma Guerra Suja”, onde narra diversos episódios dos anos de repressão. Ele foi beneficiado pela Lei de Anistia, e nunca foi punido pelos crimes que cometeu.
Nesta terça-feira o presidente Jair Bolsonaro questionou a legitimidade da Comissão da Verdade, que apurou crimes cometidos na ditadura militar.
Ele deu a declaração ao ser perguntado por jornalistas sobre a conclusão da comissão para a morte de Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira, pai do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz.
De acordo com a Comissão da Verdade, Fernando foi preso e morto por agentes do Estado brasileiro na ditadura militar.
Na segunda-feira (29), Bolsonaro disse que “um dia” contaria para o presidente da OAB como o pai havia morrido. “Ele não vai querer saber a verdade”, disse Bolsonaro.
Felipe Santa Cruz respondeu que acionaria o Supremo para que o presidente esclarecesse a fala. Santa Cruz afirmou ainda que Bolsonaro agiu como um “amigo do porão da ditadura”.
Mais tarde, Bolsonaro afirmou que o pai do presidente da OAB foi morto pelo “grupo terrorista” Ação Popular do Rio de Janeiro, e não pelos militares.
O atestado de óbito de Fernando, incluído no último dia 24 no sistema da Comissão de Mortos e Desaparecidos, diz que ele foi morto pelo Estado brasileiro.
A presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, Eugênia Gonzaga, classificou a fala de Bolsonaro como “extremamente grave”.
Nesta terça, na entrada do Palácio da Alvorada, jornalistas questionaram o presidente de que a versão dele contraria a oficial. Bolsonaro respondeu:
“Você acredita em Comissão da Verdade? Qual foi a composição da Comissão da Verdade? Foram sete pessoas indicadas por quem? Pela Dilma (Rousseff, ex-presidente)”, disse o presidente.
Bolsonaro ainda chamou de “balela” documentos sobre mortes na ditadura. “Nós queremos desvendar crimes. A questão de 64, existem documentos de matou, não matou, isso aí é balela”, afirmou o presidente.
Indagado se está disposto a fornecer as informações que dispõe sobre a morte de Fernando para o STF, o presidente disse que não tem registros escritos e que sua versão está baseada em “sentimento”. “O que eu sei é o que falei para vocês. Não tem nada escrito que foi isso, foi aquilo. Meu sentimento era esse”, disse Bolsonaro.
Perguntado se tem documentos para mostrar que Fernando foi morto por um grupo de esquerda, o presidente ironizou: “Você quer documento para isso, meu Deus do céu? Documento é quando você casa, você se divorcia. Eles têm documentos dizendo o contrário?”, disse Bolsonaro.
Corpo incinerado – De acordo com a Comissão Nacional da Verdade, Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira sumiu em 1974 e foi “preso e morto por agentes do Estado brasileiro”. Ainda segundo a comissão, Santa Cruz “permanece desaparecido, sem que os seus restos mortais tenham sido entregues à sua família”.
O relatório final da comissão diz ainda que Claudio Guerra, ex-delegado do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS-ES), afirmou em depoimento em 2014 que o corpo de Fernando Santa Cruz Oliveira foi incinerado na Usina Cambahyba, em Campos dos Goytacazes (RJ).
Ainda de acordo com a comissão, o ex-sargento do Exército Marival Chaves Dias do Canto também afirmou em depoimento que havia um esquema de transferência de presos entre estados, que envolvia o encaminhamento dos presos para locais clandestinos de repressão, como a Casa da Morte.
Segundo a comissão, Marival disse que os presos Eduardo Collier Filho e Fernando Santa Cruz teriam sido vítimas dessa operação.
Documento da Aeronáutica – A Comissão da Verdade disponibiliza na internet um documento do antigo Ministério da Aeronáutica segundo o qual Fernando Santa Cruz foi preso em 22 de fevereiro de 1974, um dia antes da data em que, segundo o atestado de óbito, ele morreu.
Comissão da Verdade – A Comissão da Verdade foi criada no primeiro mandato da ex-presidente Dilma Rousseff e funcionou entre 2012 e 2014.
O relatório final do grupo apontou 377 pessoas como responsáveis diretas ou indiretas pela prática de tortura e assassinatos durante a ditadura militar, entre 1964 e 1985.
O relatório consolidou o material apurado em dois anos e sete meses por meio de audiências públicas, depoimentos de militares e civis e coleta de documentos referentes ao regime militar. (Com informações do site Brasil de Fato e G1 Política)