O Laboratório de Pesquisa em Infecção Hospitalar do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) já recebeu em 2021 mais que o triplo de amostras de bactérias resistentes a antibióticos em comparação ao que foi analisado em 2019, último ano antes da pandemia da covid-19. O levantamento foi divulgado ontem, 19, pelo instituto, cujos pesquisadores alertam para o risco de maior disseminação da resistência a antibióticos pelo aumento do uso desses medicamentos durante a emergência sanitária.
Mas o IOC/Fiocruz não faz o alerta sozinho. Reportagem do jornal espanhol El País publicada um dia antes, na quinta-feira, 18, também trata do assunto em título assustador: “A próxima pandemia já começou: covid-19 acelera a aparição de superbactérias.”
Na reportagem a codiretora do Plano Nacional Frente à Resistência aos Antibióticos, Cristina Muñoz, afirma que é os medicamentos contra as bactérias estão deixando de funcionar, a uma velocidade agora acelerada pelo consumo excessivo e incorreto durante a pandemia de Covid-19.
A cientista convida a imaginar o dia a dia sem antibióticos, um horripilante mundo onde qualquer infecção poderia ser letal. Sem cesarianas, sem transplantes de órgãos, sem operações de menisco, sem prótese de quadril.
“Seria dar um passo atrás de quase 100 anos nos avanços médicos”, adverte Muñoz. “Aconteceriam coisas que nem nos ocorre pensar, como que uma criança caia, abra o joelho, seja levada ao hospital e o médico lhe diga que não há nada a fazer, que sente muito”, explica.
Algumas doenças bacterianas —como a pneumonia, a tuberculose, a gonorreia e a Salmonelose— já estão ficando sem tratamentos eficazes. A quimioterapia, que favorece as infecções microbianas nos pacientes com câncer ao reduzir suas defesas, também seria uma prática de alto risco na ausência de antibióticos. “Deixaríamos de curar as pessoas, mas também os animais. Não poderíamos produzir alimentos saudáveis”, adverte Muñoz. A um regresso das enfermidades do século XIX se somaria também a fome.
As amostras de “superbactérias” no Brasil são enviadas ao laboratório do IOC por outros laboratórios de saúde pública de diversos Estados de forma espontânea, já que lá funciona a retaguarda da Sub-rede Analítica de Resistência Microbiana em Serviços de Saúde (Sub-rede RM), instituída pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e pelo Ministério da Saúde (MS). Como unidade de retaguarda, o laboratório atua na análise aprofundada das bactérias resistentes a antibióticos, que são detectadas em casos de infecção hospitalar.
O IOC informa que, em 2019, chegaram ao laboratório pouco mais de mil amostras de bactérias resistentes a antibióticos. Em 2020, esse número chegou a quase 2 mil, e, de janeiro a outubro deste ano, já atingiu 3,7 mil. O instituto ressalta que, enquanto os números oficiais da Anvisa sobre bactérias resistentes para 2020 e 2021 ainda não estão disponíveis, o aumento observado em centros de referência pode ser considerado como um alerta.
Em texto divulgado pelo IOC/FIocruz, a chefe do Laboratório de Pesquisa em Infecção Hospitalar, Ana Paula Assef, explica que houve um aumento no volume de pacientes internados em estado grave e por longos períodos durante a pandemia, o que aumenta o risco de infecções hospitalares.
“Em parte, a alta na prescrição de antibióticos nos hospitais durante a pandemia pode ser justificada pelo maior número de pacientes graves internados, que acabam desenvolvendo infecções secundárias e necessitando desses medicamentos. Porém, o uso excessivo precisa ser controlado para evitar que se impulsione a resistência bacteriana”, alerta a chefe do laboratório.
A pesquisadora disse que pesquisas no Brasil e no exterior sugerem que pode ter ocorrido prescrição exagerada de antibióticos para internados por covid-19. O IOC cita um estudo global publicado em janeiro que aponta um percentual de mais de 70% de pacientes com covid-19 tratados com antibióticos durante a internação, quando se estima que coinfecções bacterianas estejam em apenas 8% dos casos.
Outra preocupação destacada pela chefe do laboratório é o aumento da resistência à polimixina, fármaco considerado a última opção terapêutica para infecções que não respondem aos demais antibióticos. Esse crescimento se deu em três grupos de bactérias frequentes entre os casos de infecções hospitalares: A. baumanii (de 2,5%, em 2019, para 5,6%, em 2021), Pseudomonas aeruginosa (de 14% para 51%), e enterobactérias (de 42% para 58%).
Em agosto, a Anvisa publicou nota técnica com orientações para reduzir a disseminação de bactérias resistentes durante a pandemia da covid-19, destacando que os antibióticos não são indicados no tratamento de rotina da covid-19, já que a doença é causada por vírus e esses medicamentos atuam apenas contra bactérias. Os antibióticos são recomendados apenas para os casos com suspeita de infecção bacteriana associada à infecção viral, recomenda a agência. (Da Redação com Agência Brasil e El País)