Apesar de ainda não ter sido incluída no Dicionário Aurélio, a palavra “negacionismo” vem sendo amplamente difundida na mídia e no cotidiano, por ocasião especialmente das questões a respeito das mudanças climáticas e, agora, também no contexto da pandemia do novo coronavírus. Fato é que o conceito não é novo. Exemplo disso são as correntes que afirmam que o Holocausto, extermínio em massa de judeus durante o regime nazista, não existiu.
Mas na seção denominada “Novas Palavras”, do portal da Academia Brasileira de Letras (ABL), está a “palavrinha” que, desde a primeira onda da pandemia no país, em março de 2020, vem sendo apontada como uma das responsáveis pelas aglomerações e desrespeito às recomendações sanitárias, como o uso de máscaras, por boa parte dos brasileiros.
Segundo a ABL, negacionismo é “atitude tendenciosa que consiste na recusa a aceitar a existência, a validade ou a verdade de algo, como eventos históricos ou fatos científicos, apesar das evidências ou argumentos que o comprovam”.
Postura manifesta na inflexibilidade e falta de empatia, mesmo diante da explosão do número de mortes – mais de 320 mil no Brasil – e das conclusões dos estudos científicos realizados por renomados cientistas de quase todo o mundo que atestam a existência e os riscos da Covid-19.
Na entrevista a seguir, a psicóloga Luciana Souza Borges Herkenhoff ajuda a esclarecer por que muitos brasileiros negam a pandemia. PhD em Psicologia do Desenvolvimento e professora da Universidade Vila Velha (UVV), ela explica que o negacionismo é a negação das evidências.
Por que as pessoas negam fatos reais, que não podem ser contestados?
Do ponto de vista psicológico o “medo” é a principal palavra que resume o que faz uma pessoa negar a realidade. Uma forma de tentar superar o temor exagerado que é sentido diante de algum contexto.
Trata-se de uma disfunção cognitiva?
Realmente se trata de uma maneira disfuncional de aceitar o que é evidente, pois a pessoa sente um medo exagerado, não sabe o que fazer, e aí a reação automática é a negação, um jeito de se afastar de uma maneira ilusória daquilo que causa pavor.
O negacionismo traz em si multifatores?
Sim. Essa negação pode surgir diante de uma série de coisas, entre elas doenças, contexto no qual podemos entrar, por exemplo, mais especificamente na questão referente à pandemia da Covid-19 e suas variantes. E isso é muito preocupante, pois se trata de algo com repercussão global, e negar uma evidência com essa dimensão pode colocar em risco a vida de milhões de pessoas em todo o mundo.
O negacionismo faz parte da convicção própria de cada um ou pode ser “plantado” na cabeça das pessoas por influência de formadores de opinião?
Nesse caso podemos dizer que, por um lado, há o negacionismo por convicção própria, motivado pelo medo particular de determinado indivíduo devido a contextos próprios, vivências e experiências que acumulou durante a vida; mas por outro lado temos sim o negacionismo que se dissemina a partir da influência de pessoas que ocupam posição de poder seja no campo político, religioso, econômico, social, educacional ou moral.
Poderia explicar melhor isso?
O jeito de ser de cada um, suas influências religiosas e ideológicas; na verdade, nesse aspecto, alguns fatores podem levar parte da sociedade a aderir, por submissão discursiva, a movimentos negacionistas, sejam eles pandêmicos ou não.
E há ainda o negacionismo mais simplório, resultado de pura ignorância cultural e educacional assimilado por pessoas sem cognição suficiente para interpretar os fatos e entender a realidade.
O que a senhora tem a dizer sobre pessoas que não usam máscaras e se aglomeram em baladas sob o argumento de que a liberdade individual é mais importante que o direito da coletividade?
Esse tipo de negacionismo pode ser consciente ou inconsciente. Há pessoas que acreditam realmente que não vão se contaminar, que não há tanto perigo, enquanto outros têm noção do risco, mas arriscam a si próprios, colocando em risco também a vida dos familiares e das pessoas que tiverem contato com eles caso sejam vitimados pelo vírus.
Trata-se de um comportamento mais ligado aos jovens, que buscam o prazer acima de tudo, e por isso vão às baladas; mas há pessoas de meia-idade agindo de forma irresponsável também, e foi mostrado na mídia até idosos fazendo festas em plena pandemia.
Há também negacionistas que assim agem por não suportarem imposições?
Com certeza. Em meu consultório trato pacientes com esse tipo de resistência motivada pela mera questão de não aceitarem que algo seja imposto a eles pelo Estado, pela polícia, por qualquer autoridade. Eles têm essa natureza de se rebelar contra tudo o que simboliza autoridade. Relatam que sofrem muito com isso, que lhes causa muita revolta, chegam a falar que para eles isso representa uma angústia, a sensação de perda de controle sobre suas próprias decisões.
E o que fazer nesses casos?
Não tem como um psicólogo obrigar uma pessoa a fazer aquilo que ela não quer. Você tenta por meio do processo de escuta e de interação, usando os métodos próprios de cada linha de abordagem (psicológica), indicar o caminho mais sensato, mostrar que a pandemia em curso vai destruir ainda muitas vidas caso não haja respeito às normas sanitárias recomendadas pelas autoridades da área da saúde.
É possível fazer um negacionista deixar de sê-lo?
Quando se trata de questões relacionadas à psicologia acredito que nunca podemos trabalhar com o pensamento de que tudo está perdido, que não há como melhorar, ainda que um pouco, o desenvolvimento psíquico do ser humano.
Eu acho que a forma mais esperançosa de fazer um negacionista aceitar uma realidade é dar o exemplo. Quem não usa máscara, por exemplo, se começar a ver praticamente todo mundo usando, pode ser que ele caia na real e veja que ele está destoando, que se praticamente todos ao redor dele usam, algo pode estar errado na forma como ele está enfrentando determinada situação. (Webales)