Apesar de separadas por cem anos, Covid-19 e gripe espanhola guardam semelhanças além de um cenário que alarma. No que parece ser a repetição da história, medidas de isolamento social, cuidados com higiene e ações governamentais para mitigar efeitos socioeconômicos da doença sobre a população ressurgem, bem como demonstrações de solidariedade. Até mesmo figuras políticas não escapam de um micro-organismo desconhecido em 1918 – o vírus.
Muito se tem comparado a pandemia pela qual passamos hoje com a influenza-A de 1918, mais conhecida como Gripe Espanhola. Avanços em todos os campos do conhecimento em relação a 100 anos atrás não impediram a surpreendente e veloz disseminação da Covid-19 em todo o mundo. O portal da Ales pesquisou e entrevistou especialistas para falar sobre o assunto. Alguns números foram levantados sobre a pandemia de 102 anos atrás aqui no Espírito Santo, mas ainda há poucas informações sobre aquele período.
Conversamos com a médica pneumologista lotada no Centro de Regional de Especialidades (CRE) Metropolitano, em Cariacica, Maria Cristina Alochio de Paiva, que é pesquisadora e doutoranda no Programa de Pós-graduação da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), e com o professor titular do mesmo programa, pesquisador de História da Medicina na mesma universidade, Sebastião Pimentel Franco.
A gripe espanhola de 1918 matou no Espírito Santo mais de 120 pessoas. No Brasil, as cidades mais afetadas foram o Rio de Janeiro, com mais de 14 mil mortes registradas de outubro a dezembro; e São Paulo, onde no período de quatro a cinco meses houve 5 mil mortes – equivalente a 1% da população da época, estimada em 500 mil habitantes.
As recomendações de prevenção básicas eram semelhantes às de hoje. Isolamento social, evitar aglomeração, usar máscaras, cuidados especiais de higiene, a começar por lavar as mãos. Além do mais, houve proliferação de recomendações médicas e farmacêuticas, inclusive vacina contra a varíola, e outras comerciais e caseiras, como assepsia das vias respiratórias, solução de água boricada, água oxigenada, quinino etc.
A pandemia contaminou, aproximadamente, 70% dos capixabas e a mortalidade foi em torno de 0,8% da população, segundo dados informados pelo então presidente do estado, Bernardino de Souza Monteiro, ao Congresso Legislativo, em 12 de outubro de 1919.
O presidente do estado falou em “terrível flagello da grippe exotica que, sob a fórma pandemica, assolou todo o Universo, [continua Monteiro] nos últimos dias de Setembro, pouco depois de ter apparecido no Rio de Janeiro, começou a assolar esta Capital e todo o interior do Estado, obrigando-nos a grandes gastos no soccorro da população do Estado, que foi atacada pelo mal na proporção de 70%. Na capital ella matou na proporção de 0,8% da população, e é de crer que egual coefficiente foi attingido em todo o Estado”.
Vitória, de acordo com o censo de 1920, da Diretoria-Geral de Estatística do governo federal, tinha população de 21.866 habitantes. Segundo Monteiro morreram 123 pessoas em todo o estado vítimas da gripe espanhola, em 1918.
“Eu estou tentando contestar esses dados. Só que na lista de enterramento do Cemitério Santo Antônio nem todos têm a gripe como causa no atestado de óbito. Mas tem gripe epidêmica, pneumonia viral, bronco-pneumonia viral. Isso tudo era gripe. Cada médico dava um diagnóstico. Como era uma doença nova, eles não sabiam nem o que era. Na época, não havia conhecimento de vírus, eles só conheciam bactéria. Eles achavam que a gripe era provocada pelo bacilo de Pfeiffer”, explica Maria Cristina de Paiva.
O microscópio de então não conseguia detectar um vírus, apenas bactérias, e muitas já tinham sido descobertas. “Eles sabiam que tinha alguma coisa que não era filtrada (pelos microscópicos de então). O vírus só foi descoberto nos anos 1930. Eles não conheciam o vírus e era uma coisa muito aterrorizante. No caso da gripe espanhola, muito característico como esta (de 2020), tinham aqueles que apresentavam alterações digestivas, como diarreia, náuseas e vômitos; tinham outros com alterações cardíacas; outros com pneumonia viral, que era o mais grave, e a pneumonia secundária, as duas maiores fontes de mortes. Depois, as sequelas, alterações cardíacas e neurovasculares, a doença do sono, alguns quadros de depressão, de transtornos”, detalha Maria Cristina de Paiva.
Faixa etária atingida – A pneumologista revela que a mortalidade por quadro respiratório tinha um índice estabilizado no estado, entre 1916 e 1920. No entanto, com a epidemia houve um salto. Além disso, a doença acometeu faixas etárias diferentes das de outros lugares.
“Em novembro de 1918, nos dez primeiros dias, teve um pico em 65% a mais de mortes. A maior parte das mortes que aconteceram no mundo foi de pessoas entre 30 e 35 anos. Aqui no Espírito Santo foi de 1 a 4 anos, em primeiro lugar, e de 20 a 35 anos”, revela a especialista.
Assembleia fechada – No anúncio do armistício da Primeira Guerra Mundial (1914-918), a Assembleia Legislativa encontrava-se fechada. “Na primeira reunião, o deputado Geraldo Viana fez a saudação pela guerra que tinha acabado (em 11 de novembro) e que a comemoração não pode ser antes por causa da epidemia, pois a Assembleia estava fechada. No dia 9 de dezembro, o deputado faz um discurso informando que somente duas prefeituras do estado não pediram socorro ao Estado”, conta Paiva.
A gripe atingiu toda a população, segundo os relatos oficiais. “Geraldo Viana vai falando dos esforços do governo, a filantropia da população, dos bispos da Igreja, das associações religiosas e filantrópicas. Da mesma forma que acontece hoje, a solidariedade para aqueles que não tinham condição. Os alunos foram dispensados das aulas em outubro e depois a Assembleia aprovou um decreto do governo no qual se suspendiam as aulas e os alunos que tiveram média cinco foram considerados aprovados”, relata Paiva.
Recursos emergenciais – A gripe chegou ao Estado no final de outubro e o pico da pandemia no ES foi nos dez primeiros dias de novembro. A Casa permaneceu fechada por, pelo menos, duas semanas. Nas sessões ordinárias da Assembleia Legislativas durante o mês de novembro e dezembro, após o período de resguardo por causa da pandemia, os deputados aprovaram créditos extraordinários para que o chefe do Executivo capixaba, Bernardino Monteiro, pudesse, emergencialmente, atender as demandas da população afetada pela gripe espanhola.
São recursos para “as despesas feitas em socorros prestados pelo Governo do Estado à população da capital e dos municipios, victimas da calamitosa epidemia, conhecida por influenza hespanhola”, consta em um dos decretos aprovados pelos parlamentares.
O então senador capixaba Jerônimo Monteiro em discurso na tribuna do Congresso Nacional descreve a situação: “Esse grande flagelo parece zombar da fortaleza física do homem e deixa como rastro um número extraordinário de mortos e um exército de combalidos entregues à fraqueza, ao depauperamento, à quase invalidez”.
Cachoeiro de Itapemirim – O semanário Cachoeirano, de Cachoeiro de Itapemirim, jornal pertencente, à época, ao Partido Republicano Espírito-Santense, sigla da família Monteiro, publica orientações para a prevenção da gripe espanhola.
Na edição de 27 de outubro de 1918 reproduz orientações do médico Carlos Pinto Seidl, diretor-geral da Saúde Pública do Brasil. Ele indica o uso da vacina contra a varíola: “não temo divulgá-la porque é evidente a vantagem dahi decorrente”, afirma.
Recomenda também a assepsia da boca, nariz e garganta. Além da água, aconselha “agua oxygenada, liquido de Dakin, listerina etc. dissolvidos em agua, na dose conveniente”. Para o nariz, o melhor é a lavagem frequente com um ‘panno em solucção boricada alcoolisada’”, orienta.
Sal de quinino é outra receita, além daquelas vindas da Inglaterra (uso da salicina) e da Suíça (solução de água salgada). Há a recomendação de evitar esforços físicos, aglomeração e lugares fechados.
Quanto aos sintomas, Seidl empresta as orientações vindas de Portugal. Os médicos informam que os primeiros sinais são catarros bruscos, temperatura acima do normal, prostração, perturbações digestivas. O surto dura mais de três dias, mas a convalescença dura mais de uma semana.
Transmissão – A gripe espanhola, segundo os médicos, não era transmitida pelas poeiras das ruas, pela água e pelas frutas, mas sim pelo ar infectado. Ressaltam que “a única medida prophylactica de real valor está em evitar a permanência em logares fechados, onde haja grande agglomeração de pessoas, ou onde esteja algum atacado do referido mal”.
Já em 10 de novembro, o jornal Cachoeirano noticia que até aquela data houve 23 mortes. Diz que não foi diretamente causado pela gripe “mas 23 obitos oriundos da actual pandemia complicada com outros estados morbidos”. O jornal fala que quando a pandemia “começou a grassar entre os indigentes, a Prefeitura Municipal estabeleceu na Pharmacia Silva um posto de socorros”, e que grupos de solidariedade visitavam regularmente as famílias pobres para levar alimentos.
O próprio semanário deixou de circular por causa da gripe. “Tendo a epidemia atacado quasi todo o nosso corpo typographico, deixou por isto de sahir domingo último o nosso jornal”, diz a nota.
Muniz Freire – Em Muniz Freire, o jornal Espírito Santo, na edição de 6 de outubro de 1918, traz matéria falando da “moléstia de Dakar”, “febre do Senegal”, “influenza hespanhola”, cuja origem é desconhecida e não há um medicamento específico contra a doença. Não se fala em infectados e tampouco de vítimas na cidade.
Já na edição de 2 de fevereiro de 1919, faz um balanço da passagem da epidemia pelo País, destacando a pronta ação do governo, mas lembrando que “onde ella se declarava, a um tempo todos da casa iam ao leito! Quanto soffrimento, quanta anciedade, por essas humildes habitações do interior do Brasil, afastadas umas das outras, cujos habitantes se viam a sós, isolados, todos doentes ao mesmo tempo, sem terem mão amiga e generosa que lhes desse um caldo!”
É espanhola mesmo? – Com as mesmas dúvidas de agora quanto à origem do novo coronavírus, responsável pela atual pandemia, em 1918, da mesma forma, havia especulações que com o tempo se transformaram em hipóteses até hoje não respondidas suficientemente.
Assim como hoje, uma das hipóteses localiza sua origem na Ásia. A médica pneumologista Maria Cristina Alochio de Paiva descreve as três possibilidades. “Uma das hipóteses é de que ela teria surgido no oeste dos EUA, próximo de um campo de treinamento de soldados onde havia muitas fazendas próximas, e dali levada pelos soldados americanos de navio para a Europa”.
A outra suspeita, de acordo com a pesquisadora, dá conta de que “teria nascido num campo de soldados na França, também próximo a fazendas”. E a terceira possibilidade diz que teria surgido na China.
“Na época, como hoje, havia na China o convívio de animais silvestres vivos, passando o vírus de um para outro. Quando um vírus faz uma mutação muito grande, ou seja, quando ele junta dois vírus de espécies diferentes num mesmo hospedeiro, ele vira um terceiro vírus muito grave, virulento”, enfatiza Maria Cristina.
Mas como o vírus entrou para os campos de batalha? “A China não entrou na guerra. Mas ela fez um acordo com os aliados para enviar soldados, ou melhor, camponeses para ocupar o lugar dos camponeses da Europa que estavam em luta. Foram para a Europa e para a Rússia. Os da Rússia foram diretamente (pelo continente asiático). Os que foram para Europa, foram de navios até o oeste do Canadá, atravessaram o oeste dos EUA de trem até o leste e dali embarcaram de navio para Europa. Esta teoria sugere que possa ter havido contaminação nesse caminho”, explica.
Essa hipótese também é corroborada pelo professor titular do Programa de Pós-graduação em História da Ufes, Sebastião Pimentel Franco. “Não se sabe exatamente qual seria a origem da doença. De onde teria vindo? Talvez, da China. Na gripe espanhola, a coisa era muito mais complexa. Alguns acreditam que ela teria surgido no Oriente. A gente também poderia dizer que a gripe teria surgido nos EUA. É possível? É”, pondera.
Seja como for que tenha aparecido o vírus influenza-A, a gripe começou sua propagação nos campos de batalha da Primeira Guerra Mundial, e não na Espanha, que era neutra no conflito. Paiva relata que como somente a Espanha divulgava a existência da gripe mortal, pareceu como que só lá existisse a epidemia.
“Houve tentativa de abafar o que estava acontecendo porque os países em guerra não podiam dizer ao inimigo como estava sua tropa, afetada pela doença. E também para não abater o moral dos habitantes, principalmente dos EUA. Então, negavam a existência da pandemia. Como a Espanha era neutra, divulgou, inclusive que o próprio rei da Espanha (Afonso XIII) teve gripe espanhola. A imprensa era controlada pelo governo, exatamente como na China agora”, compara a pesquisadora da Ufes.
Veio por navios – Já no caso do Brasil, acrescenta Sebastião Franco, “a gripe surgiu com brasileiros em viagem que passaram por Dacar, na África. Alguns dizem, ainda, que a gripe veio com o navio Demerara, com alguns tripulantes com a doença e isso teria provocado então a disseminação da gripe. A gripe espanhola se alastrou por todas as regiões, todos os estados da federação foram atingidos”, diz.
O escritor e médico Pedro Nava (1903-1984) em sua obra Chão de Ferro menciona o fato, descrevendo como ele presenciou a chegada da peste no Rio de Janeiro. O Brasil havia enviado à Europa em guerra uma missão médica que, inclusive, tinha parentes de Nava na comitiva. Conta que antes de a má notícia chegar à população, o “demônio” “já tinha chamado a atenção das autoridades sanitárias, pois a 30 de setembro (de 1918) Carlos Seidl já põe a funcionar um serviço de assistência domiciliar e de socorro aos necessitados”.
O escritor mineiro, à época com 15 anos, testemunha que em 3 de outubro têm início medidas de profilaxia indiscriminada. “Nesse dia, chega à Guanabara mais um barco eivado (contaminado) — o Royal Transportt. Antes, a 14 de setembro, o Demerara tinha entrado com doentes a bordo. Provavelmente, outros tinham antecipado esses transportes, sem chamar a atenção, mas já contaminados e contaminando”, observa.

Jornal carioca diário fundado em 2 de agosto de 1875 por José Ferreira de Sousa Araújo. Introduziu uma série de inovações na imprensa brasileira, como o emprego do clichê, das caricaturas e da técnica de entrevistas, chegando a ser um dos principais jornais da capital federal durante a República Velha.
GAZETA DE NOTÍCIAS (RJ) – 1918
– edição 270 – pág. 1
– edição 286 – pág. 1
– edição 287 – pág. 1
– edição 291 – pág. 1
– edição 293 – pág. 1
– edição 294 – pág. 1
– edição 301 – pág. 1
– edição 309 – pág. 1
Rio de Janeiro vazia – As medidas de recolhimento social já estavam acontecendo na cidade, “as providências das autoridades abriram os olhos do povo e este se explicou certas anomalias que vinham sendo observadas na vida urbana; tráfego rareado, cidade vazia e meio morta, casas de diversão pouco cheias, conduções sempre fáceis, as regatas, as partidas de water-polo e futebol quase sem assistentes”, descreve Pedro Nava.
O conhecimento médico de Nava permite nos brindar em sua obra com uma descrição sobre a origem da gripe. “Synochus catarrhalis era o nome de uma doença epidêmica, clinicamente individualiza desde tempos remotos e que periodicamente, cada vez com maior extensão, assola a humanidade. Essa extensão está relacionada à velocidade sempre crescente das comunicações. Seu contágio já andou a pé, a passo de cavalo, à velocidade de trem de ferro, de navio e usa, nos dias de hoje (a primeira edição do livro é de 1976), aviões supersônicos — espalhando-se pelo mundo em dois, três, quatro dias”, escreve.
“Quando passou pela Itália (na epidemia de 1802 que duramente castigou Veneza e Milão), recebeu o nome que fez fortuna: influenza (influência do frio, influenza di freddo, em italiano)”. Já o termo gripe vem depois, “do meio do século passado (século 19) e foi primeiro empregado por Sauvages, de Montpellier (médico e pesquisador francês), tendo em conta o aspecto tenso, contraído, encrespado, amarrotado — grippé — que ele julgou ver na cara de seus doentes”, conta o escritor em suas memórias.
Peste bubônica – Historicamente, a medicina vem enfrentando, de tempos em tempos, pandemias avassaladoras. Esta pela qual passamos não é a primeira. Vale lembrar a peste bubônica, que assolou povos da China até a Península Ibérica entre os anos 541 e 544 d.C..
A pandemia foi apelidada pelos inimigos dos bizantinos de Praga de Justiniano, imperador de então. Um estudo aponta as semelhanças existentes entre a peste bubônica e a Covid-19 no que diz respeito ao comportamento geral diante de um inimigo de eliminação desconhecida.
As observações foram publicadas por El País, em matéria sobre estudo recente da pesquisadora Jordina Sales Carboneli, da Universidade de Barcelona. Perplexidade, descontrole sanitário, assistencial, mortes em massa, confinamento, indagações médicas sem respostas, medidas emergenciais são as características que se repetem, não como farsa, mas como tragédia. (Webales)