Rodrigo Capelo*
Com quase R$ 1 bilhão de receita, o Flamengo chegou ao ponto mais alto da história do futebol brasileiro. A arrecadação rubro-negra é a maior já registrada no futebol do país. Praticamente todas as linhas tiveram acréscimos relevantes, sobretudo as que tiveram impacto direto das conquistas em campo.
Na televisão, a fórmula de distribuição do dinheiro das televisões aberta e fechada mudou em 2019 e ficou mais equilibrada e meritocrática. O Flamengo continua na dianteira. Como sua participação sobre o pay-per-view também é muito superior às demais, disparou.
Outra explicação para os direitos de transmissão R$ 100 milhões acima do ano retrasado está nas premiações. No momento em que o futebol tornou as receitas mais variáveis, com a supervalorização da Libertadores e da Copa do Brasil, o dinheiro pago por essas competições aumentou. Elas são compreendidas como tevê nesta análise.
Na área comercial, houve um decréscimo de R$ 4 milhões. Quase nada. O Flamengo perdeu o patrocínio da Caixa, que saiu do futebol, e conseguiu se manter mais ou menos no mesmo nível com patrocínios privados. Foi bem, diante das circunstâncias e na comparação com rivais.
Bilheterias mais do que dobraram. O sócio-torcedor também aumentou. Com reajustes nos preços, até o quadro social que frequenta o clube rendeu mais. A renda gerada por meio da torcida é a maior do país.
E nas transferências de atletas, facilitado pela venda de Lucas Paquetá ao Milan – ocorrida no segundo semestre de 2018, porém contabilizada integralmente no balanço de 2019 –, o Flamengo se tornou o primeiro brasileiro na história a arrecadar R$ 300 milhões com jogadores.
O perfil do faturamento do Flamengo em 2019
Se não houvesse pandemia, o desafio flamenguista seria equilibrar as receitas num cenário em que não repetiria os R$ 300 milhões com jogadores. Patrocínios precisariam subir, principalmente, para continuar próximo do R$ 1 bilhão por ano. Mesmo tendo vendido Reinier para o Real Madrid por valor novamente muito alto, acima dos R$ 100 milhões.
Com a pandemia do coronavírus, bilheterias tendem a render muito menos. Paralisação das competições, recomeço com portões fechados, um decréscimo nesta linha será inevitável. Patrocínios e jogadores serão ainda mais importantes para continuar no mesmo patamar em receita.
Nos gastos, o Flamengo mudou de estratégia. Em vez de poupar dinheiro para pagar dívidas, regra dos seis anos anteriores sob Eduardo Bandeira de Mello, a diretoria do novo presidente Rodolfo Landim aumentou a aposta para enfim conquistar títulos.
Para que se tenha visão mais clara da mudança de postura, essas são as remunerações do futebol – que incluem salários, encargos trabalhistas, direitos de imagem, direitos de arena e gratificações, porém sem considerar o clube social e esportes olímpicos/amadores.
Folha salarial
R$ 89 milhões em 2015
R$ 125 milhões em 2016
R$ 175 milhões em 2017
R$ 211 milhões em 2018
R$ 341 milhões em 2019
Um asterisco importante: como estão incluídas na folha as bonificações pagas ao elenco profissional pelas conquistas de campeonatos, esta parte ajuda a explicar um aumento tão relevante em 2019. Que pode não se repetir em 2020, caso os “bichos” pagos não sejam os mesmos.
É ruim que o Flamengo gaste tanto com salário de jogador? Muito pelo contrário. A presença de gente como Jorge Jesus e Arrascaeta, entre tantos outros de primeira linha para padrões nacionais, só ocorre porque o clube pode remunerá-los à altura. Este é o objetivo primário.
Enquanto o clube estiver fechando suas contas no azul – e em 2019 elas fecharam também graças aos títulos –, estará tudo certo.
Mudando de métrica, a evolução do investimento feito na contratação de jogadores ajuda a dimensionar a mudança de estratégia com Landim na presidência. Trata-se dos valores efetivamente desembolsados na compra de direitos econômicos e federativos, conforme o fluxo de caixa.
Compra de direitos de jogadores
R$ 37 milhões em 2015
R$ 43 milhões em 2016
R$ 71 milhões em 2017
R$ 124 milhões em 2018
R$ 243 milhões em 2019
Os números mostram duas coisas. Primeiro: o Flamengo se sacrificou mesmo para que pudesse ter a atual capacidade de investimento, pois investiu e gastou pouco com jogadores enquanto pagava dívidas. Segundo: se alguém ainda tinha dúvida sobre a nova postura no mercado de transferências, os dados da temporada passada confirmam.
Até aqui passamos por receitas e despesas, depois pelo fluxo de caixa para mostrar investimentos na compra de atletas. Entraremos nas dívidas. Para que o blogueiro não tome bronca de contadores, favor não fazer cálculos por conta própria misturando fluxo de caixa e dívidas, ok?
O perfil do endividamento
do Flamengo por vencimento
A diretoria deveria zerar as dívidas? Na verdade, não. Importante é tê-las sob controle. Isso significa ter capacidade de manter os pagamentos dentro do prazo, evitar multas e juros, manejar as dívidas para voar mais alto no futebol sem comprometer as finanças. Isso é básico.
No caso do Flamengo, houve um aumento recente no endividamento por uma razão simples. À medida que jogadores são comprados “a prazo”, as parcelas podem não estar atrasadas, mas são literalmente dívidas. Pois foi justamente nesta linha que houve aumento considerável.
O detalhamento abaixo mostra quanto era devido pelo Flamengo pela compra de jogadores na data de fechamento do balanço: 31 de dezembro. Isso inclui os direitos econômicos e federativos (pagos ao clube vendedor) e comissões e luvas (pagas a intermediários e atletas). Com um recorte importante: apenas no curto prazo. Pois assim o torcedor tem uma noção mais clara da pressão nas contas.
Contas a pagar por jogadores no curto prazo
R$ 18 milhões em 2016
R$ 24 milhões em 2017
R$ 62 milhões em 2018
R$ 118 milhões em 2019
É muito dinheiro, sem dúvida, mas dois números aliviam um pouco qualquer princípio de preocupação. O Flamengo encerrou 2019 com R$ 88 milhões em caixa e ainda tinha R$ 50 milhões a receber por vendas de jogadores no curto prazo. Grosseiramente, uma coisa anula a outra.
Muito melhor analisar o endividamento assim, quebrando em partes para entender o que há de mais grave, do que com o número bruto. Até porque da dívida inteira praticamente a metade está equacionada no longo prazo por meio do Profut e não suscita nenhuma preocupação.
Empréstimos bancários tomados na temporada passada para equilibrar o fluxo de caixa são baixos demais. Mesmo se considerados os R$ 40 milhões noticiados em 2020, consequência do aperto causado pelo coronavírus, não parece haver nada de errado com as contas.
O Flamengo está em uma situação singular na história recente do futebol brasileiro. Não houve entre outros campeões a percepção clara de que estavam, no topo da tabela, tranquilos financeiramente.
O Cruzeiro operava muito acima de sua real capacidade nos anos em que foi campeão nacional; o Fluminense tinha um parceiro externo que pagava as contas; o Corinthians logo se complicou com a construção de seu estádio; só mesmo o Palmeiras acompanhava o passo rubro-negro.
Não acompanha mais. Na arrecadação, no custo, nas contratações. O Flamengo voa sozinho. E os números mostram que uma hegemonia esportiva – com títulos conquistados em série, como fazem os gigantes europeus – é provável numa conjuntura de quebradeira generalizada.
*Rodrigo Capelo é blogueiro do Globo Esporte, especializado em negócios do esporte. O texto foi editado pelo jornalista Weber Andrade.