Weber Andrade*
Sempre tive uma atração, diria quase afeição, por cemitérios. Eles começaram a fazer parte da minha vida bem cedo, lá na minha pequena cidade natal, ainda conhecida como São Manoel do Mutum, já divisando com o sudeste capixaba. E continuam a me atrair até hoje, como se chamassem-me para habita-los.
Confesso que já senti arrepios ao visita-los, fora de horas, nas noites enluaradas, em busca da visão de um fogo fátuo. Para quem não sabe, o fogo fátuo é como uma pequena explosão de pólvora que acontece nos cemitérios, quase sempre nas horas mortas, altas madrugadas. Cientificamente dizem que é um gás que se forma após a decomposição da carne e escapa, como uma flatulência.
Para mim são como se as almas, finalmente, se libertassem da matéria, deixassem a terra, a carne espúria que apodrece na escuridão das catacumbas, túmulos, mausoléus ou covas rasas, para ascender ao cosmos.
Dizem que muitas almas não conseguem alcançar essa graça e ficam eternamente aprisionadas na escuridão do seu pequeno e derradeiro degredo. Mas há muitas que explodem graciosamente no ar, um segundo, talvez menos, de fogo azul e amarelo, como a chama de um fogão a gás.
Em Governador Valadares tive um amigo que morava ao lado de um cemitério e passava noites acordado esperando para surpreender uma alma a explodir na atmosfera. Era fotógrafo, mas nunca conseguiu eternizar a imagem que o hipnotizava. Mas dizia observar, vez ou outra, o espetáculo.
Em Mutum, o cemitério ficava no fundo da Igreja Matriz de São Manoel, que parece e é mesmo, uma extensão da nave, construída estrategicamente no meio de uma colina que divide a cidade. Antes que dessem melhor proteção aos corpos que ali eram depositados, havia acima do barranco desgastado, apenas uma cerca de ripas e, em dias de chuva forte, a terra escapava por debaixo da cerca e, não raramente, algumas caveiras escapuliam junto com ela das covas e desciam a rua Gustavo Capanema, assustando as crianças e até adultos.
Depois fizeram o muro em volta e impediram, assim, a fuga dos esqueletos. Melhor ainda: o muro era bem alto para quem estava do lado de fora, coisa de três metros ou mais. Porém, de dentro tinha pouco mais de metro de altura, era perfeito para quem desejasse espreitar a rua.
Naqueles tempos, início dos anos 70, eu não conhecia a palavra hallowen e nem sabia que havia um dia dedicado às bruxas. Mesmo assim, com um ou dois amigos, costumava furtar belas abóboras, cuja polpa raspávamos por uma abertura circular feita cuidadosamente no lado contrário ao do talo. Depois construíamos os olhos, o nariz, a boca e colocávamos uma vela por dentro, na base.
A imagem daqueles fantasmas, daquelas cabeças ocas iluminadas por dentro eram fascinantes e ensejavam fortes pesadelos, pelo menos em mim.
Quando cheguei a Barra de São Francisco, o cemitério ficava bem ali no meio do morro do bairro Cruzeiro, ao lado do Clube das Perobas, exatamente onde hoje é o hospital.
Na verdade, o deslocamento do cemitério para o bairro Irmãos Fernandes, para além de abrir espaço para os novos defuntos, teve como objetivo secundário ou primordial, abrigar o nosocômio, naquela altura quase um portal, um preparatório para o traslado à última morada.
Ali também tive a oportunidade de conviver com os crânios que escapavam da terra movida pelas máquinas insensíveis ao descanso dos mortos. Era uma festa brincar com aquelas pessoas desconhecidas, subitamente arrancadas de suas covas e catacumbas.
Depois, já adolescente, fui estudar no recém construído Colégio Polivalente, erguido bem ao lado do novo cemitério. Gostava de ir pra lá, meditar entre os túmulos, cabular aula, apreciar as fotos que os familiares até hoje costumam depositar dos seus entes queridos, com mensagens, homenagens, pequenas histórias.
Frequentei também o cemitério em Mantena, mas não ousaria revelar o motivo nesta crônica. Basta dizer que havia uma quadra ao lado e que, antes das peladas, nos reuníamos no interior do cemitério, um pequeno mas unido grupo de amigos e contávamos estórias, fazíamos planos. Viagens, viagens…
Hoje já não tenho o mesmo ímpeto, a mesma atração obstinada pelos cemitérios, mas de quando em vez, costumo visitar o cemitério que vi nascer e, parece que verei morrer, no Irmãos Fernandes.
Está assoberbado, quase sem espaço para novos defuntos e eu fico pensando onde será o próximo, se é para ele que irei, ou se o destino me levará de novo desta cidade que adotei como minha depois de ter vivido em tantas outras, para ser, quem sabe cremado ou confinado em cemitério mais moderno, desses em que as covas são gavetas amontoadas uma por cima das outra.
*Weber Andrade é editor de Conteúdo do site ocontestado.com