Com cinco dias de atraso, Lula falou sobre o uso do jato do empresário do ramo da Saúde José Seripieri Júnior para ir à COP 27, no Egito. Ao falar, deu de ombros para o artigo 317 do Código Penal, que trata como crime de corrupção passiva o ato de “solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, […] vantagem indevida.” Limitou-se a terceirizar responsabilidades. E acenou para a reincidência.
Lula culpou Bolsonaro pela falta de transporte oficial: “Se o Estado brasileiro fosse democrático, e a gente tivesse um presidente responsável, quem sabe ele tivesse oferecido um avião da FAB para me levar.” Insinuou que o bolsonarismo o impediu de recorrer a voos de carreira: “É importante lembrar que um presidente eleito tem que cuidar da sua segurança, sobretudo num país em que você tem bolsonaristas raivosos se espalhando pelo mundo.”.
Afora a segurança que a PF é obrigada a lhe proporcionar até o dia da posse, Lula dispõe como ex-presidente da República de uma equipe de assessores que inclui guarda-costas. Pela lei, o Estado é obrigado a pagar passagens e hospedagem sempre que os servidores incumbidos de proteger Lula precisam viajar com ele. Algo que torna desprezível a alegação de que o personagem seria alvo fácil da hostilidade de bolsonaristas caso optasse pelo uso de aviões de carreira.
Lula flertou com a reincidência ao expressar sua gratidão ao empresário companheiro: “Sou grato ao meu amigo, que foi comigo e me emprestou o avião. Eu espero que ele esteja disposto em outras oportunidades, antes de eu assumir a Presidência, porque depois não posso. Se eu tiver alguma viagem, e ele quiser me emprestar o avião e ir junto comigo, eu vou agradecer.”
Seripieri é um personagem notório. Foi preso junho de 2020 em operação da Polícia Federal que apurava pagamentos feitos por baixo da mesa à campanha do senador José Serra. Foi solto quatro dias depois.
Segundo a PF, a Qualicorp, empresa fundada pelo amigo de Lula, fraudara contratos para dissimular os repasses eleitorais. Em delação mantida sob sigilo, Seripieri assumiu culpas e pagou multa de mais de R$ 200 milhões. Mas nada disso é relevante para a compreensão do episódio do empréstimo do jato.
Ainda que Seripieri ostentasse uma ficha higienizada, a prudência desaconselharia a aceitação de favores por um presidente que acaba de ser eleito nas pegadas de uma campanha em que o tema da corrupção ressurgiu como uma unha encravada nos pés de barro do petismo. O conflito de interesses é flagrante.
Embora tenha se desligado da Qualicorp, Seripieri continua operando no setor de Saúde. É dono da QSaúde. Seus negócios têm uma interface com as atividades da engrenagem federal. São afetados, por exemplo, por decisões da ANS, a Agência Nacional de Saúde, cujos diretores são indicados pelo presidente da República e aprovados pelo Senado.
A despeito do enorme passado que Lula tem pela frente, não seria razoável supor que cogite retribuir favores com decisões que passarão por sua mesa ao longo do futuro terceiro mandato. Entretanto, isso não livra o presidente da necessidade de exibir, desde a fase de transição, um comportamento de mulher de César.
Não basta ser honesto, é preciso parecer probo. Nesse contexto, uma explicação que soa como confissão não é apenas inconveniente. É inacreditável.
Em privado, Lula chamou de “picuinha” a saraivada de críticas que recebeu por voar nas asas do conflito de interesses. Ao tratar como hostilidade gratuita a censura ao seu comportamento, feita reservadamente inclusive por correligionários, Lula se comporta como um passageiro que viaja num avião imaginando que toda a bagagem do antipetismo viaja em outro.
Uol