Por Izabel Maria da Penha Piva* e Rogério Frigerio Piva**
“Vem bailar comigo, neste céu sem desencanto, pois a dor que tange a gente não resiste esse meu canto. / Vem fazer de conta que não tem conta pra se contar. / É que o acalanto do meu canto faz sonhar. Sob o céu veneciano que eu quero te amar …” Alcir da Silva Bolzan (Filinho), Céu Veneciano, Grupo Musical Engenho Novo, 1981.
Andando pelas ruas de Nova Venécia e observando as pessoas, notamos que possuem uma beleza singular. Alguns, com olhos claros que contrastam com a pele morena, ou, por vezes, os cabelos claros acompanham um olhar negro. A diversidade de biótipos é tamanha, tal qual a heterogeneidade cultural. Pudera! Nova Venécia se fez como terra de muitos povos.
Alguns aqui estavam e eram senhores deste chão há milênios. Esta natureza que os protegia e alimentava, os fazia guerreiros e detentores de uma sabedoria milenar. O líder indígena “Pip-Nuk” – cujo nome significava “aquele que não se vê” – pertencia a grande nação dos Borum (Aimoré/Botocudo), e buscava a convivência harmoniosa com a natureza, perdida para eles com a vinda dos europeus.
Estes formaram uma nova sociedade, tornando-se senhores com seus títulos de nobreza. Fizeram produzir sobre a nova terra o café. Representante desta nobreza é o major Antônio Rodrigues da Cunha, agraciado com o título de “Barão de Aymorés”, que construiu sua fazenda na região onde existem os contrafortes do que seria a lendária “Serra dos Aimorés”. Sua casa-grande, conhecida popularmente como “Casarão dos Escravos” (referência à mão-de-obra utilizada em sua construção) foi o cenário dessa mistura, por vezes violenta ou pacífica, de povos indígenas, europeus e africanos. Este casarão tornou-se um ícone simbólico no imaginário de todos, principalmente após seu completo arruinamento no início dos anos 2000.
Os africanos escravizados, trazidos à força para o trabalho braçal, não só construíram a riqueza dos nobres, como deixaram arraigadas na terra, seus costumes, suas histórias e sua luta pela liberdade, aqui na nossa cidade representada principalmente por Constância de Angola, mulher, mãe e guerreira, que nos últimos anos do Império, entre as matas à beira do Cricaré, batalhava pelo fim do suplício do seu povo.
Com o processo de abolição, a mão-de-obra imigrante se fez presente, demonstrando a coragem que possui quem deixa para trás sua terra, mesmo que em busca de novas expectativas, novos sonhos. Também participaram desta saga, nordestinos, mineiros e outros grupos que fazem parte da história de Nova Venécia.
Aos pés da Pedra do Elefante esses povos de diferentes culturas iniciaram a pluralidade cultural que se faz presente na nossa comida, uma mistura de cores e sabores. Em um passeio gastronômico, estamos bem representados pela polenta, a taiadella e o pão caseiro. Encontramos ainda a carne de porco frita e acebolada, perfumando o entorno de nossas casas. Nas festas do interior provamos o sabor tradicional do caldo de aipim ou do feijão tropeiro. Quitutes como biscoitos de polvilho, não podem ser esquecidos, sem falar no cafezinho, no queijo e doces da roça, em especial, as balas de coco da Dona Ecila na Fazenda Santa Rita. Na época da Semana Santa é uma festa! O coco e o amendoim torrado espalham seus aromas, temperando as panelas de canjica, que não podem faltar. E tem a torta de palmito (ou repolho), influência portuguesa agregada à região. Quem resiste a uma terra com tantos sabores?!
Continuando nosso passeio nos deparamos com algumas varandas cheias de plantas e flores, as hortas nos quintais, as árvores dando sombra à tardezinha. Para quem vem de fora é um deleite observar essa delicadeza. Observa-se um tapete de retalhos em uma dessas varandas, fruto do artesanato local. Na sala da casa, almofadas em forma de coração. Na cozinha, panos de prato, marcados com tanta precisão. As mãos incansáveis de algumas mulheres da região, muitas vezes do interior do município, despertam em nós a saudade de um tempo que já se foi. Ao passar em outras varandas, redes e cadeiras de madeira e palha, estas, feitas pelos Merlin, artesanato secular trazido de Verona, na Itália, por esta família e que nos fazem lembrar das tardes em companhia de nossos avós.
Podemos passear mais um pouco pelo centro da cidade, observar o casario, as igrejas, em especial a Matriz e sua arquitetura singular, o prédio da Prefeitura, visitar praças, deleitar-se com o rio Cricaré e suas águas mansas. A Escadaria “Jamilli Daher Rocha”, desde 1957, faz a ligação entre a Rua Eurico Salles e a Avenida Vitória no Centro. Diz-se que seu estilo foi inspirado na Escadaria Maria Ortiz em Vitória e construída na gestão do ex-prefeito, o baiano Zenor Pedroza Rocha (1955-1958) quando era simplesmente “Escadaria da Travessa Itapemirim”. Em 2003 foi restaurada e rebatizada com o nome da saudosa dona Jamilli, esposa do Sr. Zenor.
Á tardezinha, na margem do rio, árvores servem de repouso para garças brancas. O pôr-do-sol, nas “montanhas”, traz aos nossos olhos luzes coloridas, como a anunciar a noite estrelada e enluarada do “céu veneciano”. Visitamos ainda a Casa de Pedra do Perletti, com seu ar misterioso, o Centro Cultural Casarão, à beira da Cachoeira Grande, no coração da cidade, e a frondosa e centenária mangueira da Rua Salvador Cardoso, árvore esta, que como a jaqueira da Praça Theodósia da Cunha Neves, vem testemunhando todo desenrolar da história desta cidade.
Como partes dos costumes da região, encontramos as festas populares, mistura de danças e folguedos, raízes de nossa cultura. Procissões, cantorias e missas compõem a festa da capela de Santo Antônio do Córrego da Serra, que ainda tem as roletas, as cantorias, as folias, as quadrilhas e os namoros, afinal é Santo Antônio!
Presenciamos ainda o terno e a folia-de-reis e suas cantorias, que precisam ser resgatadas e divulgadas. É muito bom ver as janelas e portas se abrindo para a chegada dos cantadores do Jesus-menino. Suas músicas, seu colorido, seu ritmo, retratam a religiosidade de uma cultura composta de grande influência nordestina. O Auto da Paixão de Cristo faz parte desse cenário cultural como representação cênica maior e mais tradicional. Encenado por atores amadores, não pode faltar na Sexta-feira Santa. O ciclo das Festas Juninas com seus tradicionais “arraiás”, evocam nossas raízes nordestinas, a “Cappitella”, festa que celebra a Imigração Italiana, e a Caminhada da Consciência Negra são eventos que promovem a cultura e buscam a representatividade de nosso povo. Devido à pandemia do Coronavírus neste ano de 2020, sobram saudades de toda essa “aglomeração”!
Também as festividades do padroeiro São Marcos. Seu leão, que impõe tanto respeito, e está sob a forma de escultura de bronze, na fachada da Matriz, foi disputado com a cidade de Nova Veneza (SC), no final dos anos 1920. Nesta época o governo da Itália teria presenteado a cidade catarinense com tal regalo. No entanto, a tripulação do navio que trouxe o presente, ao aportar em Vitória, em escala para os portos do sul, revelou que esse seria dado à “Nuova Venezia, America dell’Sud”. Pronto, a confusão estava armada! Aqui também tínhamos uma “Nuova Venezia”, ao oeste da velha cidade de São Mateus, para a qual, o leão foi enviado. Dizem que ao saber do desvio do seu presente os catarinenses pensaram até em se armar, caso fosse necessário, para vir buscar o seu leão de bronze. Mas era tarde, esse fora tomado nos braços pela nossa população. A questão somente foi resolvida quando o governo italiano enviou outro leão, que até hoje guarda a fachada da Matriz de São Marcos, na cidade de Nova Veneza, em Santa Catarina.
É assim, da mistura de todos esses povos, da união da concertina, da sanfona, do triângulo e do atabaque, dessa cultura ítalo-nordestina-africana, com aspectos indígenas, e recebendo influência mineira e germânico-pomerana, que se fez Nova Venécia. Não podemos nos esquecer dos que vieram antes de nós e abriram caminhos para que pudéssemos ir além. Nos tempos atuais a cidade sempre recebe novos moradores. Acolhe, agrega e permite a reconstrução de sonhos e vidas. Assim somos nós, juntos em suas singularidades. E isso é muito bom!
Devido a rotina massacrante geralmente não percebemos as belezas do lugar em que vivemos, mas conhecer e preservar nossa memória e nossos costumes nos faz únicos em um mundo de cultura massificante. Quando sabemos quem somos, nos fortalecemos em nossa identidade. Aprendemos e desejamos lutar por uma cidade melhor para todos. E assim, construímos cidadania.
* Izabel Maria da Penha Piva é mestra em História pela UFES e professora de História na rede estadual em Nova Venécia.
** Rogério Frigerio Piva é graduado em História pela UFES, membro do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo e professor de História na rede municipal em Nova Venécia.
Referência Bibliográfica:
PIVA, Izabel M. da P. e PIVA, Rogério F. À Sombra do Elefante: a Área de Proteção Ambiental da Pedra do Elefante com guardiã da História e Cultura de Nova Venécia (ES). Nova Venécia: Edição dos Autores, 2014.